sábado, 29 de agosto de 2015

Supermoon



A Lua capta a potência radiante, impositiva, quente do sol e a transforma, via polarização (a Lua emite luz polarizada), em magnetismo balsâmico, apaziguador, regenerativo.

É o eterno masculino e o eterno feminino.

O Sol que fecunda e a Lua que gesta e multiplica.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Pátria amada


BRASIL, eu ouso dizer que conheço um pouquinho do teu íntimo, dos teus segredos escondidos. E te digo, sem hesitar, que nunca deixarei de te amar. Tu és o meu país.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Israel e a Revelação



(...) " Deus e homem, mundo e sociedade formam uma comunidade primordial do ser. A comunidade, com sua estrutura quaternária, é, e não é, um dado da experiência humana. Ela é um dado da experiência na medida em que ela é conhecida pelo homem em virtude de sua participação no mistério de sua existência. Ela não é um dado da experiência na medida em que ela não se dá da mesma forma que um objeto do mundo exterior, sendo conhecível apenas pela perspectiva da participação nela.

A perspectiva da participação deve ser compreendida em toda a sua qualidade perturbadora. Ela não significa que o homem, mais ou menos confortavelmente localizado na paisagem do ser, pode olhar à sua volta e enumerar o que ele vê, tão longe quanto sua vista alcança. Tal metáfora, ou variações comparáveis sobre o tema dos limites do conhecimento humano, destruiria o caráter paradoxal da situação. Ela sugeriria um espectador isolado, possuindo e conhecendo suas faculdades, no centro de um horizonte do ser, mesmo que o horizonte seja restrito. Mas o homem não é um espectador isolado. Ele é um ator, tem um papel no drama do ser, e, pelo puro fato de sua existência, ele é forçado a cumprir o seu papel sem saber qual é este papel. Já é perturbador quando um homem acidentalmente se coloca na situação de não estar bem certo de qual é o jogo e como ele deve se conduzir de modo a não estragar este jogo; porém, com sorte e habilidade, ele pode escapar da situação vergonhosa e voltar à rotina mais confortável de sua vida. A participação no ser, entretanto, não é um envolvimento parcial do homem; ele se envolve nisso com toda a sua existência, pois a participação é a própria existência. Não há nenhum ponto de vista além da existência de onde o seu significado possa ser visto e um curso de ação traçado de acordo com um plano, não há uma ilha abençoada onde o homem pode se retirar de modo a recapturar o seu ser. O papel da existência deve ser cumprido sem qualquer certeza de seu significado, uma aventura de decisões na fronteira entre a liberdade e a necessidade.

Tanto o papel quando o roteiro são desconhecidos. Mas é pior ainda, pois o ator não sabe com segurança quem ele é. Neste momento a metáfora da peça pode nos levar a erro, a não ser que a usemos com cuidado. Sem dúvida, a metáfora é justificada, e mesmo necessária, pois ela transmite a verdade de que a participação do homem no ser não é cega, e sim iluminada por sua consciência. Existe uma experiência da participação, uma tensão reflexiva na existência, que irradia o sentido da proposição: o Homem, em sua existência, participa do ser. Este sentido, entretanto, se perderá se esquecermos que o sujeito e o predicado da proposição são termos que explicam uma tensão da existência, e não conceitos que denotam objetos. Não existe um objeto chamado ‘Homem’ que participa do ‘ser’ como se fosse uma atividade opcional a ele; existe, sim, ‘algo’, uma parte do ser, capaz de se experimentar como tal, e também capaz de usar a linguagem e de chamar a esta consciência experimentante pelo nome de ‘Homem’. O ato de nomear é certamente um ato fundamental de evocação, de trazer à realidade, de constituir esta parte do ser como um parceiro distinguível na comunidade do ser. Mesmo assim, apesar do ato de evocação ser fundamental – pois ele forma a base de tudo o que o homem vai aprender sobre si mesmo ao longo da história – ele não é o ato de cognição. A ironia socrática da ignorância se tornou o exemplo paradigmático da consciência deste ponto cego no cento de todo o conhecimento humano sobre o homem. No centro de sua existência, o homem desconhece a si mesmo e não pode alterar esta situação; pois a parte do ser que se chama de homem só poderia se conhecer por completo se a comunidade do ser e seu drama no tempo fossem conhecidos por completo. A participação do homem no ser é a essência de sua existência, e esta essência depende do todo, do qual a existência é apenas uma parte. O conhecimento do todo, entretanto, é impedido pela identidade do conhecedor e do parceiro, e a ignorância do todo impede um conhecimento essencial da parte. Esta situação de ignorância do âmago decisivo da existência é mais do que meramente desconfortável: ela é profundamente perturbadora, pois das profundezas desta ignorância insolúvel se ergue a ansiedade da existência.

A ignorância insolúvel e essencial não é uma ignorância completa. O homem pode alcançar um conhecimento considerável sobre a ordem do ser, e a distinção entre o conhecível e o não-conhecível não é a menor parte deste conhecimento. Tal conquista, entretanto, é um produto tardio do longo processo de experiência e simbolização que é o assunto do presente estudo. A preocupação do homem com o significado de sua existência no campo do ser não fica contida nas torturas da ansiedade, ela se expressa na criação de símbolos que pretendem tornar inteligíveis as relações e tensões entre os termos discerníveis do campo. Nas fases iniciais do processo criativo os atos de simbolização são muito prejudicados pela multidão de fatos não explorados e problemas não resolvidos. Nada é muito claro além da experiência de participação e da estrutura quaternária do campo do ser, e esta claridade parcial tende a gerar confusão mais do que ordem, como forçosamente ocorre quando assuntos variados são acumulados em poucas categorias. Mesmo assim, na confusão destas fases iniciais existe método suficiente para permitir a distinção de características típicas do processo de simbolização.

A primeira destas características típicas é o predomínio da experiência da participação. O que quer que o homem seja, ele se conhece como uma parte do ser. A grande torrente do ser, na qual ele flui enquanto ela flui por ele, é a mesma torrente à qual pertence todo o resto que é visto em sua perspectiva. A comunidade do ser é experimentada com tamanha intimidade que a consubstancialidade dos parceiros se sobrepõe à separação das substâncias. Nós nos movemos em uma comunidade encantada, onde tudo o que se apresenta a nós tem força e vontade e sentimentos, onde os animais e plantas podem ser homens e deuses, onde homens podem ser divinos e deuses são reis, onde o céu da manhã é o falcão Horus e o Sol e a Lua são os seus olhos, onde a identidade subjacente do ser é o condutor de correntes mágicas de forças benévolas e malévolas que alcançam subterraneamente o mesmo parceiro inalcançável, onde as coisas são as mesmas e não são as mesmas, e podem se transformar umas nas outras.

A segunda característica típica é a preocupação com o duradouro e o passageiro (ou seja, a durabilidade e a transiência) nos parceiros da comunidade do ser. Apesar da consubstancialidade, existe a experiência da existência separada na torrente do ser, e as diversas existências são distinguidas por seus graus de durabilidade. Um homem perdura enquanto outros se vão, e ele se vai enquanto outros perduram. Todos os seres humanos se vão enquanto a sociedade da qual são membros perdura, e as sociedades se vão enquanto o mundo perdura. E o mundo não apenas é transiente em comparação com os deuses, mas talvez ele seja criado por eles. Sob este aspecto, o ser exibe uma hierarquia da existência, desde a humildade efêmera do homem até a eternidade dos deuses. A experiência da hierarquia fornece um dado importante do conhecimento sobre a ordem do ser, e este conhecimento, por sua vez, pode, e se torna, uma força que ordena a existência do homem. As existências mais duradouras, sendo as mais abrangentes, fornecem, por sua estrutura, uma moldura na qual a existência inferior deve caber, a não ser que esteja disposta a pagar o preço da extinção. Um primeiro raio de significado cai sobre o papel do homem no drama do ser quando ele percebe que o sucesso do ator depende de sua sintonia com as ordens mais duradouras e abrangentes da sociedade, do mundo, e de Deus. Esta sintonia, entretanto, é mais do que um ajuste externo às exigências da existência, mais do que um encaixe planejado em uma ordem ‘sobre a qual’ nós conhecemos. ‘Sintonia’ sugere a penetração do ajuste até o nível da participação no ser. O que perdura e passa, sem dúvida, é a existência, mas já que a existência é a parceria no ser, perdurar e passar revelam algo do ser. A existência humana é passageira, mas o ser do qual ela bebe não cessa com a existência. Ao existir, experimentamos a mortalidade; no ser nós experimentamos o que só pode ser simbolizado pela metáfora negativa da imortalidade. Em nossa separação discernível como existentes nós experimentamos a morte; em nossa parceria no ser, experimentamos a vida. Mas aqui outra vez alcançamos os limites que são determinados pela perspectiva da participação, pois perdurar e passar são propriedades do ser e da existência como se apresentam a nós na perspectiva de nossa existência; quando tentamos objetificá-los, nós perdemos mesmo o pouco que alcançamos. Se tentamos explorar o mistério da transiência como se a morte fosse uma coisa, não encontraremos nada além do nada que nos faz tremer com ansiedade, desde as profundezas da existência. Se tentamos explorar o mistério da durabilidade como se a vida fosse uma coisa, não encontramos a vida eterna, nos perdemos nas imagens de deuses imortais, de existência paradisíaca ou olímpica. Após nossas tentativas de exploração, somos devolvidos à consciência de nossa ignorância essencial. Mesmo assim, ‘conhecemos’ algo. Nós experimentamos a nossa própria durabilidade na existência, mesmo que passageira, assim como a hierarquia da durabilidade; e nestas experiências a existência se faz transparente, revelando algo do mistério do ser, o mistério do qual ela participa mesmo se não sabe do que se trata. A sintonia, portanto, será o estado da existência no qual ela está atenta àquilo que é duradouro no ser, quando ela mantém uma tensão de consciência de suas revelações parciais na ordem da sociedade e no mundo, quando ela ouve com atenção às vozes silenciosas da consciência e da graça na própria existência humana. Somos despejados para dentro e para fora da existência sem saber o Porquê ou o Como, mas enquanto estamos aqui, nós sabemos que somos do ser ao qual retornamos. Deste conhecimento surge a experiência da responsabilidade, pois apesar de que este ser, confiado ao nosso gerencialmente parcial na existência enquanto perdura e passa, possa ser adquirido pela sintonia, ele também pode ser perdido por descuido. Daí que a ansiedade da existência é mais do que um medo da morte no sentido da extinção biológica; ele é o horror mais profundo de perder, com a passagem da existência, o frágil apoio na parceria do ser que experimentamos como sendo nosso, enquanto a existência perdura. Na existência nós cumprimos o nosso papel na grande peça do ser divino que penetra a existência passageira de modo a redimir o ser precário por toda a eternidade.

A terceira característica típica do processo de simbolização é a tentativa de tornar a ordem do ser, essencialmente não-conhecível, em algo tão inteligível quanto possível através da criação de símbolos que interpretam o desconhecido por analogias com o realmente, ou supostamente, conhecido. Estas tentativas possuem uma história na medida em que a análise e a reflexão, ao responder à pressão da existência, geram símbolos cada vez mais adequados para o seu trabalho. Blocos compactos do conhecível são diferenciados em suas partes componentes, e o próprio conhecível é gradualmente diferenciado daquilo que é essencialmente não-conhecível. Portanto, a história da simbolização é uma progressão desde experiências e símbolos compactos até experiências e símbolos diferenciados. Já que este processo é o assunto de todo o livro, no momento mencionaremos apenas duas formas básicas de simbolização que caracterizam grandes períodos da história. Uma delas é a simbolização da sociedade e de sua ordem como um análogo do cosmos e de sua ordem; a outra é a simbolização da ordem social por analogia com a ordem de uma existência humana bem sintonizada ao ser. Sob a primeira forma a sociedade será simbolizada como um microcosmos; sob a segunda forma, como um macroantropos.

A primeira forma a ser mencionada é também a mais antiga. A razão disso é bastante clara e não requer explicações elaboradas, pois a terra e o céu são a ordem na qual a existência humana deve se encaixar, se quiser sobreviver, de uma forma tão impressionante, que o parceiro extraordinariamente poderoso e visível na comunidade do ser inevitavelmente se apresenta como uma possível fonte e modelo de toda a ordem, incluindo a ordem do homem e da sociedade. De qualquer maneira, as civilizações do Oriente Médio que serão estudadas na Parte I deste estudo simbolizaram a sociedade politicamente organizada como um análogo cósmico, um cosmion, ao permitir que ritmos vegetativos e revoluções celestes funcionassem como modelos para a ordem estrutural e procedimental da sociedade.

O segundo símbolo ou forma – a sociedade como um macroantropos – tende a aparecer quando os impérios cosmologicamente simbolizados se dissolvem e em seu desastre solapam a confiança na ordem cósmica. A sociedade, apesar de sua integração na ordem cósmica, se desgovernou; se o cosmos não é a fonte da ordem duradoura na existência humana, qual é a fonte desta ordem? Neste momento a simbolização tende a se voltar para aquilo que é mais duradouro do que o mundo visível – ou seja, para o ser invisível que existe além de todos o ser da experiência tangível. Este ser invisível divino, transcendente a todo o ser do mundo e ao próprio mundo, só pode ser experimentado como um movimento na alma do homem; e por isso a alma, quando sintonizada ao deus invisível, se torna o modelo da ordem que fornecerá os símbolos para a organização da sociedade de forma análoga à sua imagem. A transição até a simbolização macroantrópica se torna manifesta na diferenciação da filosofia e da religião desde as formas precedentes, mais compactas, de simbolização, e ela pode ser empiricamente observada, de fato, como um evento na fase da história que Toynbee classificou como o Tempo das Tormentas. No Egito, a ruptura social entre o Antigo e o Médio Reinos testemunhou o crescimento da religiosidade de Osíris. Na desintegração feudal da China surgem as escolas filosóficas, especialmente as de Lao-tsé e Confúcio. O período de guerras antes da fundação do Império Maurya é marcado pelo aparecimento do Buda e do Jainismo. Quando o mundo da pólis helênica desapareceu, apareceram os filósofos, e os problemas posteriores do mundo helênico foram marcados pelo surgimento do Cristianismo. Seria temerário, no entanto, generalizar este evento típico de modo a formular uma ‘lei’, pois existem complicações nos detalhes. A ausência de tal transição durante a desintegração da sociedade babilônica (tanto quanto as fontes escassas permitem-nos julgar) sugere que a ‘lei’ deve ter ‘exceções’, enquanto que Israel aparentemente alcançou a segunda forma de simbolização sem qualquer conexão clara com uma ruptura institucional específica, ou desintegração social subseqüente.

Uma outra característica típica nos primeiros estágios do processo de simbolização é a consciência do homem do caráter analógico de seus símbolos. Esta consciência se manifesta de diversas formas, correspondendo aos diversos problemas de cognição através de símbolos. A ordem do ser, permanecendo na área da ignorância essencial, pode ser simbolizada analogicamente usando-se mais de uma experiência da ordem parcial na existência. Os ritmos da vida das plantas e dos animais, a seqüência das estações, as revoluções do sol, da lua, e das constelações podem servir como modelos para a simbolização analógica da ordem social. A ordem social pode servir como um modelo para a simbolização da ordem celeste. Todas estas ordens podem servir como modelos para a simbolização da ordem no reino das forças divinas. E as simbolizações da ordem divina podem, por sua vez, ser usadas para a interpretação analógica das ordens existenciais no mundo.

Nesta rede de elucidação mútua, inevitavelmente ocorrem símbolos concorrentes e conflitantes. Estas concorrências e conflitos serão considerados, por longos períodos, como não problemáticas pelos homens que as produzem; as contradições não geram desconfiança na verdade dos símbolos. Se algo é característico da história primitiva da simbolização, é o pluralismo na expressão da verdade, o reconhecimento e tolerância generosos que se estendem a simbolizações rivais da mesma verdade. A auto-interpretação de um império primitivo como o único e verdadeiro representante da ordem cósmica na terra não é de forma alguma abalada pela existência de impérios vizinhos que se engajam no mesmo tipo de interpretação. A representação de uma divindade suprema sob um nome e forma especiais em uma cidade-estado da Mesopotâmia não é abalada por uma representação diferente em uma cidade-estado vizinha. E a mistura de diversas representações que ocorre quando um império unifica várias cidades-estado que eram independentes, a mudança entre representações que ocorre quando há uma troca de dinastias, a transferência de mitos cosmogônicos de uma divindade para outra, e assim por diante, mostram que a variedade de simbolizações é acompanhada por uma vívida consciência da unidade da verdade que o homem tenta representar por meio de seus diversos símbolos. Esta tolerância primitiva é preservada por muito tempo no mundo greco-romano, e encontra sua expressão máxima no ataque de Celso ao Cristianismo, como o perturbador da paz entre os deuses.

A tolerância primitiva reflete a consciência de que a ordem do ser pode ser representada analogicamente de mais de uma forma. Cada símbolo concreto é verdadeiro na medida em que vislumbra a verdade, mas nenhum deles é completamente verdadeiro, pois a verdade sobre o ser escapa ao alcance humano. Nesta penumbra da verdade cresce a rica flora – luxuriante, confusa, assustadora, e encantadora – das histórias sobre deuses e demônios e suas influências organizadoras e desorganizadoras na vida do homem e na sociedade. Existe uma liberdade magnífica de variação sobre, e elaboração de, temas fundamentais, cada novo crescimento e desenvolvimento adicionando uma faceta ao grande trabalho de analogia que cerca a verdade invisível; é a liberdade que, no nível da criação artística, ainda infunde o trabalho de Homero, a tragédia do século V a.C., e a mitopoeia de Platão. Esta tolerância, no entanto, alcança o seu limite quando a consciência do caráter analógico da simbolização se sente atraída pelo problema da adequação maior ou menor dos símbolos ao seu propósito de fazer transparecer a ordem verdadeira do ser. Os símbolos são muitos, mas o ser é um só. A própria multiplicidade de símbolos, consequentemente, pode ser experimentada como uma inadequação, e pode haver tentativas de organizar a multiplicidade de símbolos em uma ordem racional e hierárquica. Nos impérios cosmológicos estas tentativas assumem a forma típica da interpretação da multiplicidade de divindades locais como aspectos de um deus imperial supremo. Mas o sumodeísmo político não é o único método de racionalização. As tentativas também podem assumir a forma mais técnica da especulação teogônica, deixando que os outros deuses se originem através da criação de um único deus realmente supremo, como por exemplo na Teologia de Mênfis, datada do terceiro milênio a.C. Estes avanços especulativos na direção do monoteísmo parecerão anacrônicos aos historiadores que querem discernir um progresso claro e simples desde o politeísmo até o monoteísmo, e já que os fatos não podem ser negados, as instâncias primitivas serão consideradas ‘precursoras’ das formulações posteriores e mais legítimas de monoteísmo, a não ser que, como um esforço ainda maior de racionalização, se busque comprovar uma continuidade histórica entre o monoteísmo israelita e Ikhnaton, ou entre a filosofia do Logos e a Teologia de Mênfis. Estes avanços primitivos parecerão menos surpreendentes, no entanto, e a busca de continuidades se tornará menos urgente, se percebermos que a diferença rígida entre politeísmo e monoteísmo, sugerida pela exclusão lógica entre o um e o múltiplo, na verdade não existe. Pois a brincadeira livre e imaginativa com uma pluralidade de símbolos só se torna possível porque a escolha de analogias é apreendida como relativamente irrelevante em comparação com a realidade do ser que elas tentam descrever. Em qualquer politeísmo existe um monoteísmo latente que pode ser ativado a qualquer momento, com ou sem ‘precursores’, se a pressão de uma situação histórica encontra uma mente sensível e ativa. (...) "

(VOEGELIN, Eric. Israel e a Revelação. A Simbolização da Ordem)

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A Lei



A vida é um dom de Deus

Recebemos de Deus um dom que engloba todos os demais. Este dom é a vida - vida física, intelectual e moral. Mas a vida não se mantém por si mesma. O Criador incumbiu-nos de preservá-la, de desenvolvê-la e de aperfeiçoá-la. Para tanto, proveu-nos de um conjunto de faculdades maravilhosas. E nos colocou no meio de uma variedade de recursos naturais. Pela aplicação de nossas faculdades a esses recursos naturais, podemos convertê-los em produtos e usá-los. Este processo é necessário para que a vida siga o curso que lhe está destinado. Vida, faculdades, produção - e, em outros termos, individualidade, liberdade, propriedade - eis o homem. E, apesar da sagacidade dos líderes políticos, estes três dons de Deus precedem toda e qualquer legislação humana, e são superiores a ela. A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis.


O que é a lei?

O que é então a lei? É a organização coletiva do direito individual de legítima defesa. Cada um de nós tem o direito natural, recebido de Deus, de defender sua própria pessoa, sua liberdade, sua propriedade. Estes são os três elementos básicos da vida, que se complementam e não podem ser compreendidos um sem o outro. E o que são nossas faculdades senão um prolongamento de nossa individualidade? E o que é a propriedade senão uma extensão de nossas faculdades? Se cada homem tem o direito de defender - até mesmo pela força - sua pessoa, sua liberdade e sua propriedade, então os demais homens têm o direito de se concertarem, de se entenderem e de organizarem uma força comum para proteger constantemente esse direito. O direito coletivo tem, pois, seu princípio, sua razão de ser, sua legitimidade, no direito individual. E a força comum, racionalmente, não pode ter outra finalidade, outra missão que não a de proteger as forças isoladas que ela substitui. Assim, da mesma forma que a força de um indivíduo não pode, legitimamente, atentar contra a pessoa, a liberdade, a propriedade de outro indivíduo, pela mesma razão a força comum não pode ser legitimamente usada para destruir a pessoa, a liberdade, a propriedade dos indivíduos ou dos grupos. E esta perversão da força estaria, tanto num caso como no outro, em contradição com nossas premissas. Quem ousaria dizer que a força nos foi dada, não para defender nossos direitos, mas para destruir os direitos iguais de nossos irmãos? E se isto não é verdade para cada força individual, agindo isoladamente; como poderia sê-lo para a força coletiva, que não é outra coisa senão a união das forças isoladas? Portanto, nada é mais evidente do que isto: a lei é a organização do direito natural de legítima defesa. É a substituição da força coletiva pelas forças individuais. E esta força coletiva deve somente fazer o que as forças individuais têm o direito natural e legal de fazerem: garantir as pessoas, as liberdades, as propriedades; manter o direito de cada um; e fazer reinar entre todos a JUSTIÇA.
......

Deixem-nos agora experimentar a liberdade

Deus colocou também na humanidade tudo o que é necessário para que ela cumpra seu destino. Há uma fisiologia social providencial. Os órgãos sociais são também constituídos de modo a se desenvolverem harmonicamente ao ar livre da liberdade. Fora com os curandeiros e organizadores! Fora com seus anéis, suas correntes, seus ganchos e suas tenazes! Fora com seus métodos artificiais! Fora com suas manias de administradores governamentais, seus projetos socializados, sua centralização, seus preços tabelados, suas escolas públicas, suas religiões oficiais, seus créditos livres, seus bancos gratuitos ou monopolizados, suas regras, suas restrições, sua piedosa moralização ou igualação pelo imposto! E posto que se infligiram inutilmente ao corpo social tantos sistemas, que se termine por onde se deveria ter começado: que se rejeitem os sistemas; que se coloque, por fim, a Liberdade à prova - a Liberdade, que é um ato de fé em Deus e em sua obra.

(BASTIAT, Frédéric. A Lei)

Economia numa única lição



(...) " A política de inflação, conforme disse, é parcialmente imposta por si mesma. Passados mais de quarenta anos após a publicação de 'General Theory' por John Maynard Keynes, e mais de vinte anos após esse livro ter sido inteiramente desacreditado pela análise e experiência, um grande número de nossos políticos está, ainda, incessantemente recomendando mais déficit, a fim de melhorar ou reduzir o desemprego existente. Uma espantosa ironia é que eles estejam fazendo estas recomendações, quando o governo federal já vem rolando um déficit de quarenta e um sobre os últimos quarenta e oito anos e quando este déficit alcançava dimensões de US$50 bilhões ao ano. 

Uma ironia ainda maior é que, não satisfeitos em seguir estas políticas desastrosas no país, nossos representantes têm criticado outros países, principalmente Alemanha e Japão, por não seguirem essas políticas “expansionistas”. Isto nos faz lembrar, nada menos, da raposa de Esopo, que, quando perdeu sua cauda, persuadiu todas as raposas suas companheiras a, também, cortarem as suas.

Um dos piores resultados da retenção dos mitos keynesianos é que, não apenas fomenta uma inflação cada vez maior, como também, sistematicamente, desvia a atenção das causas reais de nosso desemprego, tais como índices de aumento salarial excessivos fixados pelos sindicato , leis de salário mínimo, seguro desemprego excessivo prolongado e pagamentos de seguro social super generosos. 

Mas a inflação, embora em parte frequentemente discutida, é hoje, principalmente, a consequência de outras intervenções econômicas governamentais. Em resumo, é a consequência do Estado de Redistribuição— de todas as políticas de desapropriação do dinheiro de Pedro a fim de dá-lo, generosamente, a Paulo. 

Este processo seria mais fácil de reconhecer e seus efeitos perniciosos mais fáceis de serem expostos, se fossem todos efetuados segundo um único padrão— como a renda anual garantida, proposta agora e seriamente considerada pelos comitês do congresso no início da década de 1970. Esta foi uma proposta para taxar, ainda mais implacavelmente, todas as rendas acima da média e transferir o lucro para todos aqueles que vivem abaixo de um denominado nível mínimo de pobreza, a fim de lhes assegurar uma renda, quer estejam inclinados a trabalhar ou não “para dar-lhes condições de viver com dignidade”. Seria difícil imaginar um plano mais claramente calculado para desencorajar trabalho e produção e, consequentemente, empobrecer todo o mundo. 

Mas, em vez de decretar uma única medida como essa, e precipitar a ruína num único golpe, nosso governo tem preferido aprovar uma centena de leis que realizam tal redistribuição numa base parcial e seletiva. Estas medidas podem não atingir inteiramente alguns grupos muito necessitados; mas, por outro lado, podem descarregar sobre outros grupos uma dúzia de diferentes espécies de benefícios, subsídios e outras vantagens. Estas incluem, para dar uma lista ao acaso: seguro social, serviço de assistência médica, atendimento mé- dico, seguro-desemprego, subsídios para alimentos, benefícios para veterano, subsídios agrícolas, moradia subsidiada, subsídios para aluguel, merenda escolar, emprego público por contrato de tarefa, auxílio a famílias com filhos dependentes, e assistência social direta de todas as espécies, inclusive auxílio aos idosos, cegos e inválidos. O governo federal calculou que, nestas últimas categorias, tem distribuído benefícios de auxílio federal para mais de quatro milhões de pessoas, sem contar o que os estados e cidades vêm fazendo. 
...
Conforme já mencionei, essas inflações, a causa, em si mesmas, de tanta miséria humana, foram, por sua vez, em grande parte, a consequência de outras políticas de intervenção econômica governamental. Praticamente, todas essas intervenções ilustram e dão ênfase, despretensiosamente, à lição básica deste livro. Todas se desenvolveram na suposição de que ofereciam algum benefício imediato a algum grupo especial. Todos os que as aprovaram, esqueceram-se de levar em conta as consequências secundárias, esqueceram-se de considerar qual seria seu efeito, a longo prazo, em todos os grupos. 

Em resumo, no que concerne aos políticos, a lição que este livro tentou introduzir, há mais de trinta anos atrás, não parece ter sido aprendida em parte alguma. 

Se examinarmos os capítulos deste livro, um após outro, não descobriremos, praticamente, forma alguma de intervenção governamental desaprovada na primeira edição que não esteja ainda sendo adotada, normalmente, com obstinação reforçada. Em todas as partes, os governos estão ainda tentando remediar, com construções públicas, o desemprego causado por suas próprias políticas. Estão taxando impostos mais pesados e mais expropriadores que nunca. Recomendam, ainda, expansão de crédito. A maioria deles ainda considera “emprego integral” sua meta de governo. Continuam a impor quotas de importação e tarifas de proteção. 

Tentam aumentar as exportações desvalorizando, ainda mais, sua moeda. Agricultores estão ainda “fazendo greve” por “preços de paridade”. 

Governos ainda fornecem incentivos especiais para indústrias sem rentabilidade. Ainda se esforçam para “estabilizar” preços de produtos especiais. 

Governos, forçando a alta de preços dos produtos, inflacionando sua moeda, continuam a responsabilizar os produtores, comerciantes e “aproveitadores” particulares pelos preços mais altos. Impõem preços máximos para o óleo e gás natural, a fim de desestimular nova exploração, exatamente quando ela mais necessita ser incentivada, ou recorrem ao tabelamento ou “controle” dos preços e salários em geral. Persistem no controle de aluguel apesar da evidente devastação que ele causa . Não apenas mantêm as leis do salário mínimo, mas continuam aumentando seus níveis, em vista do crônico desemprego que tão evidentemente provocam. Continuam decretando leis que concedem privilégios especiais e imunidades aos sindicatos de trabalhadores; para obrigar os trabalhadores a tornarem-se associados, para tolerar os piquetes de grevistas e outras formas de coerção; e para compelir os patrões a “negociarem coletivamente em boa fé” com esses sindicatos, isto, é, fazer pelo menos algumas concessões a suas exigências. A intenção de todas estas medidas é “ajudar o trabalhador”. Mas o resultado, uma vez mais, é criar e prolongar o desemprego, e baixar os pagamentos de salário no total, comparados com o que podiam ter sido. 

Muitos políticos continuam a ignorar a necessidade de lucros, para superestimar o montante líquido total ou médio, para denunciar lucros não comuns em alguma parte, para tributá-los excessivamente e, às vezes, mesmo para lamentar a verdadeira existência de lucros. 

A mentalidade anticapitalista parece mais profundamente impregnada do que nunca. Sempre que há qualquer demora no negócio, agora os políticos veem como causa principal o “gasto insuficiente do consumidor”. Ao mesmo tempo que encorajam maior gasto pelo consumidor, aumentam cada vez mais as dificuldades e penalidades, a fim de economizar e investir. Hoje, o principal método de fazer isto, conforme já vimos, é aplicar na inflação, ou acelerá-la. O resultado é que, hoje, pela primeira vez na história, nenhuma nação tem um padrão-metal, e praticamente todas as nações estão iludindo seu próprio povo, com emissões de papel-moeda cronicamente depreciado.
...
Em resumo, o principal problema que enfrentamos hoje não é econômico, mas político. Bons economistas estão inteiramente de acordo a respeito do que deve ser feito. Praticamente todas as tentativas governamentais para redistribuir riqueza e renda tendem a reprimir os incentivos de produção e a levar ao empobrecimento geral. Cabe à própria esfera de governo criar e fazer cumprir uma estrutura de lei que proíba força e fraude. Mas deve abster-se de fazer intervenções econômicas específicas. A principal função do governo é estimular e preservar o mercado livre. Quando Alexandre, o Grande visitou o filósofo Diógenes e perguntou-lhe se podia fazer alguma coisa por ele, diz-se que Diógenes respondeu: “Sim, fique um pouco menos entre mim e o sol.” É o que todo cidadão tem o direito de pedir ao seu governo. 

A perspectiva é sombria, mas não é inteiramente sem esperança. 

Aqui e ali pode-se observar uma abertura entre as nuvens. 

Cada vez mais as pessoas estão compreendendo que o governo nada tem para dar-lhes, sem primeiro tirar, o que lhes vai dar, de alguém, ou delas próprias. Vantagens aumentadas para grupos selecionados significam apenas impostos aumentados, ou déficits aumentados e inflação aumentada. E inflação, finalmente, atrapalha e desorganiza a produção. Mesmo alguns políticos estão começando a reconhecer isso, e alguns deles estão mesmo dizendo isso claramente. 

Além disso, há acentuados sinais de uma mudança nos ventos intelectuais da doutrina. Keynesianos e New Dealers parecem estar numa lenta retirada. Conservadores, partidários da doutrina do livre arbítrio e outros defensores da iniciativa livre estão tornando-se mais francos e mais articulados. E há muito mais deles. Entre os jovens, há um rápido crescimento de uma escola disciplinada de economistas “austríacos”. Há uma promessa real de que a política pública pode ser invertida, antes que os danos provenientes de medidas e tendências existentes se tornem irreparáveis. "

(HAZLITT, Henry. Economia numa única lição. Parte III)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Ética da Redistribuição



(...) “ Jouvenel faz outra distinção fundamental dentro do próprio redistributivismo. O moderno redistributivismo compreende dois elementos completamente díspares: a crença de que o governo deve estar centralmente envolvido no alívio da pobreza, e a crença de que a desigualdade econômica é, em si mesma, injusta ou prejudicial. Essas duas crenças têm estado fundidas, até, na crescente aceitação da visão de que é responsabilidade do governo assegurar à população padrões de vida ascendentes. Mais um passo é dado na direção do redistributivismo igualitário quando, à proposta de que o governo forneça um piso de subsistência abaixo do qual ninguém poderia cair, soma-se a proposta de que seja instituído um teto acima do qual ninguém possa ascender.

Como demonstra Jouvenel, tais propostas igualitárias recebem o aparente apoio da invocação de um felicific calculas que incorpora o argumento de que a renda tem utilidade marginal decrescente – argumento que ele critica incisivamente, ao mostrar os impedimentos  insuperáveis a tentarmos fazer comparações confiáveis de satisfação interpessoal. Jouvenel poderia também ter observado que, mesmo se as utilidades fossem comparáveis de pessoa para pessoa, a redistribuição segundo os princípios marginalistas teria resultados moralmente perversos. Isso sancionaria a redistribuição dos recursos desde os mais desvalidos (os paraplégicos debilitados, digamos) àqueles situados principalmente na média da renda e com dotes naturais, que poderiam gerar mais satisfação dos recursos. Esse não é um resultado congenial ao sentimento igualitário, mas flui inexoravelmente do argumento marginalista da redistribuição.

A crítica ética de Jouvenel acerca do redistributivismo é poderosa e muito fundamentada. Ele desenvolve uma crítica empírica importante do redistributivismo igualitário, quando observa que os recursos necessários para prover a subsistência mínima não podem derivar exclusiva, ou principalmente, da tributação aos ricos. Tais recursos têm que ser extraídos das classes médias, que também são beneficiá- rias dos esquemas de transferência de renda. Este é um ponto de vital importância na crítica de Jouvenel. Sua percepção de que o desfecho do redistributivismo dos esquemas de transferência é extremamente complexo e, às vezes, regressivo vem sendo amplamente confirmada por experiências históricas mais recentes. Ele observa, também, que uma política de redistribuição está fadada a discriminar as minorias, já que, inevitavelmente, favorecerá as preferências e interesses da maioria – fato esse também observado por Hayek.

Além disso, o redistributivismo é condenado por Jouvenel por minar o sentido de responsabilidade pessoal. Nisso incorre ao transferir dos indivíduos para o estado a autoridade por decisões que lhes são vitais. Ao suprir todas as necessidades básicas do indivíduo, o estado deixa-o com autoridade apenas na esfera de determinar como gastar os seus trocados. Novamente, o efeito do redistributivismo é desprivilegiar a família em favor de ficções legais como as empresas – principalmente por conferir aos negócios imunidades tributárias negadas às famílias. O regime de tributação elevada, inseparável do estado redistribuidor, tem ainda as indesejáveis consequências de diminuir a esfera de serviços voluntários em que as pessoas se engajam nas relações de convivência sem expectativa de pagamento – e, com isso, corroer a cultura de civilidade que sustenta a civilização liberal.

Para Jouvenel, no entanto, o resultado mais profundo da política de redistribuição é o ímpeto que ela dá ao penoso processo de centralização. Se o estado confisca rendas elevadas e impõe índices penalizantes de tributação sobre a poupança e o investimento, o estado tem que assumir as atividades de poupança e investimento que os indivíduos não são mais capazes de assumir. Se, por causa do confisco das rendas elevadas, há atividades sociais e culturais que não mais podem ser sustentadas pelo setor privado, tais como o suporte para a alta cultura e as artes, então, uma vez mais, o estado tem, através de um programa de subsídios, que assumir a responsabilidade por tais atividades. Inevitavelmente, o estado vem a exercer um nível crescente de controle sobre as mesmas. A consequência da política de redistribuição, então, é a restrição à iniciativa privada em muitas esferas da vida social, a destruição do homem de meios independentes, e o enfraquecimento da sociedade civil.

Jouvenel vai além, especula que o processo causal subjacente pode seguir na direção oposta: a política de redistribuição pode ser um incidente num processo de centralização que adquiriu um momentum próprio. Aqui, Jouvenel antecipa as constatações da 'Virgínia School of Public Choice', teorizadas mais profundamente na obra de James Buchanan, que demonstram as origens do estado expansionista nos interesses econômicos das burocracias governamentais. Como Jouvenel, mais uma vez antecipando as percepções de futuros teóricos sobre a da Nova Classe, prescientemente conclui:

  Nós bem podemos imaginar quais desses dois fenômenos intimamente ligados é predominante: redistribuição ou centralização. Podemos nos perguntar se não estamos lidando com um fenômeno muito mais político do que social. Esse fenômeno político consiste na demolição da classe que desfruta de “meios independentes” e na concentração de meios nas mãos de administradores. Isso resulta numa transferência de poder dos indivíduos para funcionários do governo, que tendem a constituir uma nova classe dominante em oposição àquela que está sendo destruída. E há uma leve, mas bastante perceptível, tendência rumo à imunidade dessa nova classe, de parte de algumas medidas fiscais direcionadas aos primeiros.

Teorias e fatos subsequentes corroboraram firmemente a percepção de Jouvenel. Pesquisas empíricas revelam que os esquemas de transferência de pagamentos das principais democracias do Ocidente carecem de preceitos e são caóticos. O estado moderno do bem-estar social não é, na mesma medida da criação da ideologia redistributivista, defensável por referência a qualquer conjunto coerente de princípios ou propósitos. Ele não aliviou significativamente a pobreza, mas, ao contrário, institucionalizou-a substancialmente. Essa é a conclusão de estudos pioneiros, tais como 'Losing Ground', de Charles Murray. Uma geração da política de bem-estar social infligiu a seus concidadãos desincentivos e riscos morais tais, que acabou por deixá-los em situação pior do que a inicial. O impacto resultante do conjunto inteiro de medidas de redistribuição conforma-se a padrões não claros (salvo, como observou Nozick, que se algum grupo social se beneficiar, provavelmente será a majoritária classe média, e não os pobres). E a conjectura de Hayek, em 'The Constitution of Liberty', de que o estado redistribuidor está fadado a ser um estado expansionista, conforme advertira Jouvenel, vem cada vez mais se concretizando com os acontecimentos.

Desenvolvimentos recentes no questionamento filosófico confirmam a profundidade essencial da análise de Jouvenel. 'Anarchy, State and Utopia', de Robert Nozick, contém uma crítica da ideia da justiça social, ou distributiva, que forma um paralelo muito próximo à crítica de Jouvenel sobre a ética da redistribuição. O ataque de Nozick, como o de Jouvenel, tem vários elementos, ou estratos. Ele demonstra, antes de mais nada, que a tentativa de impor um padrão sobre a distribuição social dos bens requer contínua interferência na liberdade individual, uma vez que presentes e livres trocas subverterão constantemente esse padrão. Como Nozick notadamente afirmou, o resultado final da tentativa de impor um padrão à distribuição é um estado socialista que proíbe atos capitalistas entre adultos que com esses concordaram. A política redistributivista incorpora um individualismo abstrato ou falso, no qual as instituições intermediárias que são a matriz indispensável da individualidade são negligenciadas ou suprimidas. É especialmente hostil à instituição que é a pedra fundamental da sociedade civil – a família. Nozick segue Jouvenel, observando que sob qualquer regime de redistribuição a instituição da família é desprivilegiada: «Sob tais visões, a família traz transtornos; pois dentro de uma família ocorrem transferências que burlam a distribuição permitida”.

É na obra mais recente de Hayek que a análise de Jouvenel tem um paralelo mais notável. No segundo volume de sua trilogia 'Law, Legislation and Liberty', intitulado 'The Mirage of Social Justice', Hayek desenvolve uma crítica devastadora às atuais concepções distributivas, reforçando e estendendo em direções completamente inovadoras o ataque central da análise de Jouvenel. A primeira, e talvez a mais radicalmente original, tese de Hayek, é de que nenhum governo ou autoridade central pode saber o suficiente para ser capaz de conceber ou impor o padrão de distribuição preferido. Isso é verdade, se os princípios de distribuição se referirem à satisfação das necessidades básicas, vinculando recompensas a méritos, realizando a igualdade de recursos ou de bem-estar, ou o que quer que seja. Quaisquer que sejam os princípios da distribuição, o conhecimento necessário para implementá-los, exceto nuns poucos casos-limite, é tão disperso por toda a sociedade, e tão frequentemente em forma tácita ou prática, que geralmente é impossível ao governo reuni-lo de forma utilizável. Essa irreparável dispersão ou divisão do conhecimento na sociedade ergue uma barreira epistemológica insuperável à realização de virtualmente todas as concepções distributivas contemporâneas. Mostram-se inviáveis mesmo as mais sutis delas, como a de John Rawls, porquanto o governo nunca poderia ter informação suficiente para saber se o Princípio da Diferença (que requer que a desigualdade seja restrita ao necessário para maximizar as posses dos desvalidos) foi satisfeito.

Há uma segunda linha de argumentação em 'The Mirage of Social Justice' que reforça a causa de Jouvenel contra a redistribuição. É o argumento de que, mesmo sendo o governo capaz de adquirir o conhecimento necessário para implementar seus princípios de distribuição preferidos, não há consenso na sociedade sobre como os diferentes princípios deverão ser ponderados quando entrarem em conflito uns com os outros. Se, por exemplo, a satisfação das necessidades básicas competir com a premiação do mérito, qual delas deverá ter prioridade? Como a nossa sociedade não contém qualquer código moral em termos de quais dessas considerações podem ser comparadas, elas são para nós incomensuráveis, não havendo, em relação a elas, qualquer procedimento razoável de arbitragem acordado. Por esta razão, qualquer alocação de recursos em conformidade com uma ponderação desses valores não pode evitar de parecer – e mesmo ser – sem princípios, impredizível e arbitrária. Por causa desses conflitos inevitáveis entre seus valores constitutivos, o redistributivismo inevitavelmente faz com que proliferem burocracias com poderes amplamente discricionários. Mas a ampla margem de autoridade discricionária exercida pelo aparato da redistribuição é difícil de conciliar com o estado de Direito, que é uma das fundações de uma sociedade livre.

Há uma linha final no argumento de Hayek que o liga à análise de Jouvenel conforme James Buchanan. É a proposição de que, na ausência de qualquer justificativa – com base em princípios – da política de redistribuição, ela é melhor explicada em termos dos seus beneficiários. O redistributivismo, então, vem a ser inteligível como um sistema de ideias cuja função é legitimar os interesses das burocracias expansionistas e, no geral, isolar dos efeitos colaterais negativos da mudança econômica os grupos de interesses bem situados. O redistributivismo, assim, emerge como a ideologia conservadora do estado intervencionista e seus grupos de beneficiários. (...)”

(JOUVENEL, Bertrand de. A Ética da Redistribuição. Introdução)