quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Aristóteles - Ética a Nicômaco - Livro I

(...) Vemos agora que o argumento, tornando por um atalho diferente, chegou ao mesmo ponto. Mas procuremos expressar isto com mais clareza ainda. Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos. 

Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa. 

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria. 

Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos os nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série infinita. 

Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar. por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade* é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação. 

Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o "bem feito" residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função. 

Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela? 

A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E, como a ''vida do elemento racional" também tem dois significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo. 

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal" têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. (...)
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* Felicidade, para Aristóteles, identificada como eudaimonía, consiste na auto-realização da natureza humana que aproxima o homem do divino, finalidade para a qual o estagirita edifica toda sua Ética.

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